domingo, 30 de agosto de 2015

Funk e Cultura

O movimento funk tem origem em estilos musicais soul music dos anos 60 e 70 e se consolida como novo formato de expressão em 1980. Na periferia carioca, as atividades culturais da juventude desse período aconteciam em torno do samba. No entanto, o reconhecimento do samba, especialmente a intervenção estatal no que diz respeito à organização das escolas de samba, bem como a sua consolidação como maior festa popular brasileira, levou-o a um afastamento da realidade social da qual ele é originário. Segundo Spirito Santo (2011), as vontades de agentes sociais das favelas fez com que o samba passasse a ser uma mercadoria cultural de grande lucro, consolidando nesse meio diversas práticas que desmotivaram a população das periferias. Nesse ínterim, jovens da comunidade negra buscavam no balanço da soul music uma identidade (SPIRITO SANTO, 2011, p. 358).

Aparentemente, os aspectos da música de tradição africana dos norte-americanos tiveram importante papel para a identificação dos jovens cariocas com a música black oriunda dos Estados Unidos. Identificados com gêneros como rap, hip hop e funk, conhecidos pelos estudos sociológicos e antropológicos como pertencentes às tradições afrodiaspóricas, os jovens cariocas passaram a empenhar-se no resgate da dignidade da população afrodescendente, atualmente situada nos grandes centros urbanos à margem da sociedade, através da música negra norte-americana.

Quando terminava os anos 80, o funk surgiu efetivamente como gênero e passou a ser composto em língua portuguesa, a evidente proposta em suas letras era a denúncia do mito da harmonia social e racial, ainda, expunha dia a dia das favelas. Os elementos do rap foram incorporados nas composições do funk no início da década de 1990. Posteriormente, a violência passa a ser retratada em algumas músicas, gerando a ideia de que o funk fazia apologia ao crime. Fatos sociais desse período, desencadeou a propagação de um discurso que estabelecia uma relação do funk com a violência, culminando, assim, na interdição dos bailes. Esses discursos foram fortemente disseminados pela mídia, resultando em produções de MCs, que expunham em suas letras temáticas como a paz e a união entre as galeras. (MARTINS, 2011, p. 68)


Passado algum tempo, sem a cobertura tendenciosa da mídia, nos anos 2000, o funk ganhou novos contornos, a temática sexual passou a ser abordada em grande parte das letras. Essa foi uma década de modificações relevantes no tocante à estrutura musical do funk, ele incorpora ritmos brasileiros por meio do “tamborzão”, chamado pelo DJ Malboro como um quase samba e considerado por Mr. Catra um samba eletrônico. (MIZRAHI, 2010, p. 101). Percebe-se que este gênero inicialmente identificado com a música negra norte-americana, passa, ao longo dos anos, a incorporar elementos da música e da cultura brasileira, sendo também uma forma de hibridização das tradições de matriz africana e do samba, que depois de ser apropriado por todas as classes sociais, precisou ser “renovado” para ter uma proximidade identitária com os jovens das favelas cariocas.

O significado do movimento e o movimento do significado

Assim como em toda dança acompanhada de música, no funk, o corpo humano se movimenta. Nesse momento ele se expressa, diz coisas, comunica emoções, denuncia a opressão, anuncia a libertação, seduz, encanta, provoca. Na cultura do funk, o corpo se movimenta para além de acompanhar a música, os seus movimentos são os outros dizeres que as palavras utilizadas na música não dão conta de enunciar.

No funk, o corpo expressa sua libertação das imposições sociais, as quais por muito tempo e em muitas circunstâncias o impediram de ser corpo, de ser autônomo e orientar sua existência. Significa a ruptura com os preceitos estipulados por uma sociedade cerceada por regras e moralismos sem sentido. Os movimentos do corpo revelam que o sujeito, pelo menos naquele momento, assume seu corpo, usando-o para uma forma de diversão descondicionada aos moralismos sociais hegemônicos.

A erotização faz parte desse processo, implica no ataque ao cerne de tabus sociais severamente preservados, no caso, assuntos ligados à sexualidade e, principalmente, a participação da mulher neste contexto. Conforme defende Amorim (2013), o funk menospreza e debocha da organização social imposta, sobretudo no que diz respeito à sexualidade. Logo, podemos afirmar que é um movimento cultural que significa a tomada do direito sobre o corpo e sobre o sexo. O corpo passa a ser usado como propriedade particular.

Além disso, o movimento funk desconstrói a ideia de que a periferia não produz arte, pois, atualmente, existe uma vasta produção musical do gênero em questão nas regiões periféricas. Dotado de características singulares, este movimento se configurou e se instaurou. A linguagem utilizada em sua composição é bastante peculiar, a qual é desprovida da normatização da língua padrão, corroborando, assim, com a ruptura das convencionalidades impostas socialmente.

Enfim, podemos pensar, portanto, que é o movimento do significado do direito sobre o corpo e sobre o sexo, da periferia que produz arte e dos sujeitos que se apropriaram da língua, antes distanciada, agora dominada para novos usos na arte.

Ao longo da história da humanidade, o homem sempre produziu formas artísticas, com elas se comunicou e por meio delas reorganizou sua realidade. A constituição do sujeito enquanto ser humano advém da internalização dos signos sociais. Em consequência disso, o sujeito representa simbolicamente a sua realidade, opera abstratamente e produz cultura, a qual pode ser compreendida como significados historicamente transmitidos, incorporados em signos, através dos quais os sujeitos se comunicam e desenvolvem conhecimento. Podem representar ideias, pensamentos, valores e crenças, intimamente relacionas à cultura. Inúmeros conceitos de cultura são vistos em distintas teorias. Neste artigo, especialmente, lembramos também um outro entendimento de cultura: “O mundo da cultura é uma mescla de antíteses e necessidades tensionais, jogo de conformismo e resistência, teias de múltiplas significações.” (Lara; 2004, p. 9)

É neste contexto que o corpo é construído e que forma suas simbologias, seus paradigmas, seu sentido ético e estético. É nele que os sujeitos procuram distanciar-se de ações castradoras ou entregar-se a elas, deixar se envolver ou ir ao encontro da liberdade.
Os movimentos humanos são construções sociais permeados de características, valores e funções específicas em diferentes contextos sociais e em diferentes épocas, logo expressam a cultura do homem, nas dimensões política, econômica, religiosa, onde estão inseridos.

Daolio (1997, p. 52-3) diz que: “o corpo é uma síntese da cultura, porque expressa elementos específicos da sociedade da qual faz parte. O homem, por meio do seu corpo, vai se apropriando de valores, normas e costumes sociais, num processo de inCORPOração [...]”. É necessário conhecer o papel social, cultural e político do corpo em nossa sociedade e é preciso trabalhar de maneira crítica as mensagens e interpretações implícitas ou explícitas nas danças que circulam na sociedade. É preciso entender o corpo como propriedade do seu próprio corpo e não como propriedade do outro.

Por Thiago Saveda

Referências

AMORIM, Márcia Fonseca. O discurso da e sobre a mulher no funk brasileiro de cunho erótico: uma proposta de análise do universo sexual feminino. 2009. 188f. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. Disponível em: < > Acesso em: 11 jan. 2013.

BAPTISTA, M. M. Estudos Culturais: O quê e o como da investigação. Carnets, Cultures littéraires: nouvelles performances et développement, n. spécial, p.451-461, automne/hiver 2009.

BRANDÃO, C. R; Identidade e Etnia: construção da pessoa e resistência cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986.

DAOLIO, Jocimar. Da Cultura do Corpo. Campinas, SP: Papirus, 1997.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ªed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LARA, Larissa Michelle. O sentido ético-estético do corpo na cultura popular. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas: UNICAMP, 2004.

MIZRAHI, Mylene. Estética funk carioca: criação e conectividade em Mr. Catra. 2010. 268f. Tese (Doutorado)-Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2011.

NELSON, C.; TREICHLER, P. A.; GROSSBERG, L. Estudos Culturais: uma introdução. In: SILVA, T. T. Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. 8ªed. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p.7-38.

RICH, Adrienne. Notas para uma política da localização. In: MACEDO, Ana Gabriela (org). Gênero, desejo e identidade. Lisboa: Cotovia, 2002.

SANTIN, S. Educação Física: uma abordagem filosófica da corporeidade. Ijuí: Unijuí, 1987.

SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3ªed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

SPIRITO SANTO. Do samba ao funk do Jorjão. Petrópolis, KBR, 2011.

GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu. Campinas, v. 14, 2000.

VEIGA-NETO, A. Cultura, culturas e educação. Revista Brasileira de Educação, p.5-15, Maio/Jun/Jul/Ago. 2003.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

O que fazer diante da morte?

Diante da morte não se faz nada. Isso mesmo, nada. Morte é morte. Ou seja, é o ponto final da sua história. Aí é que está. Sua história? Como ela foi construída? Sua narrativa será conhecida com orgulho? Feitos heroicos, lutas, conflitos internos, atitudes nobres, virtudes, a participação do outro... como tudo isso aconteceu? Ou não aconteceu?

Quando esta glamourosa Senhora bate a nossa porta, tudo começa a fazer sentido. Então, ou nos desesperamos com sua aproximação, nitidamente certa, ou tranquilos e de coração manso, puxamos uma cadeira para ela e a recebemos com a maior cordialidade de quem já sabia que ela iria chegar. E sabendo disso, antes mesmo de conhecê-la, já amigavelmente preparou o momento para um bom papo. É uma prosa boa, que nem parece prestação de contas de tão leve que é. A cada fato alegre, os olhos brilham. A cada tristeza, os olhos marejam, mas em nenhum momento envergonhados. Todos justificados na batalha que é viver.

A morte é o último degrau, aquele perto da porta. Você vai por o pé nele, a porta vai abrir e quem estiver lá do outro lado dela, vai te receber ainda no degrau. Sem volta.
O que fazer diante da morte? Nada. Somente entre.

Thiago Saveda