O
movimento funk tem origem em estilos musicais soul
music
dos anos 60 e 70 e se consolida como novo formato de expressão em
1980. Na periferia carioca, as atividades culturais da juventude
desse período aconteciam em torno do samba. No entanto, o
reconhecimento do samba, especialmente a intervenção estatal no que
diz respeito à organização das escolas de samba, bem como a sua
consolidação como maior festa popular brasileira, levou-o a um
afastamento da realidade social da qual ele é originário. Segundo
Spirito Santo (2011), as vontades de agentes sociais das favelas fez
com que o samba passasse a ser uma mercadoria cultural de grande
lucro, consolidando nesse meio diversas práticas que desmotivaram a
população das periferias. Nesse ínterim, jovens da comunidade
negra buscavam no balanço da soul
music uma
identidade (SPIRITO SANTO, 2011, p. 358).
Aparentemente,
os aspectos da música de tradição africana dos norte-americanos
tiveram importante papel para a identificação dos jovens cariocas
com a música black
oriunda
dos Estados Unidos. Identificados com gêneros como rap,
hip
hop e
funk,
conhecidos pelos estudos sociológicos e antropológicos como
pertencentes às tradições afrodiaspóricas, os jovens cariocas
passaram a empenhar-se no resgate da dignidade da população
afrodescendente, atualmente situada nos grandes centros urbanos à
margem da sociedade, através da música negra norte-americana.
Quando
terminava os anos 80, o funk surgiu efetivamente como gênero e
passou a ser composto em língua portuguesa, a evidente proposta em
suas letras era a denúncia do mito da harmonia social e racial,
ainda, expunha dia a dia das favelas. Os elementos do rap foram
incorporados nas composições do funk no início da década de 1990.
Posteriormente, a violência passa a ser retratada em algumas
músicas, gerando a ideia de que o funk fazia apologia ao crime.
Fatos sociais desse período, desencadeou a propagação de um
discurso que estabelecia uma relação do funk com a violência,
culminando, assim, na interdição dos bailes. Esses discursos foram
fortemente disseminados pela mídia, resultando em produções de
MCs, que expunham em suas letras temáticas como a paz e a união
entre as galeras. (MARTINS, 2011, p. 68)
Passado
algum tempo, sem a cobertura tendenciosa da mídia, nos anos 2000, o
funk ganhou novos contornos, a temática sexual passou a ser abordada
em grande parte das letras. Essa foi uma década de modificações
relevantes no tocante à estrutura musical do funk, ele incorpora
ritmos brasileiros por meio do “tamborzão”, chamado pelo DJ
Malboro como um quase samba e considerado por Mr. Catra um samba
eletrônico. (MIZRAHI, 2010, p. 101). Percebe-se que este gênero
inicialmente identificado com a música negra norte-americana, passa,
ao longo dos anos, a incorporar elementos da música e da cultura
brasileira, sendo também uma forma de hibridização das tradições
de matriz africana e do samba, que depois de ser apropriado por todas
as classes sociais, precisou ser “renovado” para ter uma
proximidade identitária com os jovens das favelas cariocas.
O
significado do movimento e o movimento do significado
Assim
como em toda dança acompanhada de música, no funk, o corpo humano
se movimenta. Nesse momento ele se expressa, diz coisas, comunica
emoções, denuncia a opressão, anuncia a libertação, seduz,
encanta, provoca. Na cultura do funk, o corpo se movimenta para além
de acompanhar a música, os seus movimentos são os outros dizeres
que as palavras utilizadas na música não dão conta de enunciar.
No
funk, o corpo expressa sua libertação das imposições sociais, as
quais por muito tempo e em muitas circunstâncias o impediram de ser
corpo, de ser autônomo e orientar sua existência. Significa a
ruptura com os preceitos estipulados por uma sociedade cerceada por
regras e moralismos sem sentido. Os movimentos do corpo revelam que o
sujeito,
pelo menos naquele momento, assume seu corpo, usando-o para uma forma
de diversão descondicionada aos moralismos sociais hegemônicos.
A
erotização faz parte desse processo, implica no ataque ao cerne de
tabus sociais severamente preservados, no caso, assuntos ligados à
sexualidade e, principalmente, a participação da mulher neste
contexto. Conforme defende Amorim (2013), o funk menospreza e debocha
da organização social imposta, sobretudo no que diz respeito à
sexualidade. Logo, podemos afirmar que é um movimento cultural que
significa a tomada do direito sobre o corpo e sobre o sexo. O corpo
passa a ser usado como propriedade particular.
Além
disso, o movimento funk desconstrói a ideia de que a periferia não
produz arte, pois, atualmente, existe uma vasta produção musical do
gênero em questão nas regiões periféricas. Dotado de
características singulares, este movimento se configurou e se
instaurou. A linguagem utilizada em sua composição é bastante
peculiar, a qual é desprovida da normatização da língua padrão,
corroborando, assim, com a ruptura das convencionalidades impostas
socialmente.
Enfim,
podemos pensar, portanto, que é o movimento do significado do
direito sobre o corpo e sobre o sexo, da periferia que produz arte e
dos sujeitos que se apropriaram da língua, antes distanciada, agora
dominada para novos usos na arte.
Ao
longo da história da humanidade, o homem sempre produziu formas
artísticas, com elas se comunicou e por meio delas reorganizou sua
realidade. A constituição
do sujeito enquanto ser humano advém da internalização dos signos
sociais. Em consequência disso, o sujeito representa simbolicamente
a sua realidade, opera abstratamente e produz cultura, a qual pode
ser compreendida como significados historicamente transmitidos,
incorporados em signos, através dos quais os sujeitos se comunicam e
desenvolvem conhecimento. Podem representar ideias, pensamentos,
valores e crenças, intimamente relacionas à cultura. Inúmeros
conceitos de cultura são vistos em distintas teorias. Neste artigo,
especialmente, lembramos também um outro entendimento de cultura: “O
mundo da cultura é uma mescla de antíteses e necessidades
tensionais, jogo de conformismo e resistência, teias de múltiplas
significações.” (Lara; 2004, p. 9)
É
neste contexto que o corpo é construído e que forma suas
simbologias, seus paradigmas, seu sentido ético e estético. É nele
que os sujeitos procuram distanciar-se de ações castradoras ou
entregar-se a elas, deixar se envolver ou ir ao encontro da
liberdade.
Os
movimentos humanos são construções sociais permeados de
características, valores e funções específicas em diferentes
contextos sociais e em diferentes épocas, logo expressam a cultura
do homem, nas dimensões política, econômica, religiosa, onde estão
inseridos.
Daolio
(1997, p. 52-3) diz que: “o corpo é uma síntese da cultura,
porque expressa elementos específicos da sociedade da qual faz
parte. O homem, por meio do seu corpo, vai se apropriando de valores,
normas e costumes sociais, num processo de inCORPOração [...]”. É
necessário conhecer o papel social, cultural e político do corpo em
nossa sociedade e é preciso trabalhar de maneira crítica as
mensagens e interpretações implícitas ou explícitas nas danças
que circulam na sociedade. É preciso entender o corpo como
propriedade do seu próprio corpo e não como propriedade do outro.
Por Thiago Saveda
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